quarta-feira, 30 de março de 2011

O falar de todos os dias e as figuras de linguagem

O falar de todos os dias e as figuras de linguagem

Engana-se quem imagina que as figuras de linguagem não aparecem nas construções próprias da fala cotidiana. Ao contrário disso, é nesse espaço de expressão que muitas delas têm seu campo mais fértil.

Pode acontecer de não nos darmos conta de que estamos usando uma figura. A catacrese e a metonímia, por exemplo, nem sempre estão a serviço da poesia ou da publicidade e, por isso mesmo, acabam passando despercebidas.

A catacrese é uma espécie de metáfora obrigatória. Figura de substituição, aparece quando um termo é posto no lugar de outro com o qual guarda relação de analogia, tal qual uma metáfora, mas com uma peculiaridade: seu uso está ligado a uma necessidade de adaptação decorrente, em geral, da falta de um termo próprio para a expressão.

É a catacrese que usamos em expressões como "orelha de livro" ou "dente de alho". O termo "engarrafamento", usado para designar o congestionamento de automóveis, ou o verbo "embarcar", usado no sentido de entrar no carro, no avião ou no trem, são exemplos de catacrese.Já a metonímia é uma figura, também de substituição, mas que parte de uma relação de contigüidade, não mais de analogia. Um termo é substituído por outro com o qual mantém estreita relação. Morar sob o mesmo teto é um exemplo de metonímia. As pessoas moram na mesma casa, que, reduzida a uma de suas partes, converte-se em teto. Daí surge a expressão "sem-teto", por exemplo, que quer dizer "sem casa para morar".

Empregar a parte no lugar do todo é um tipo de metonímia a que comumente se chama sinédoque. O termo metonímia, no entanto, é mais amplo. Pode englobar outras relações, das quais uma das mais freqüentes é a de continente e conteúdo.
Ao dizer que tomou uma taça de vinho, a pessoa não está querendo dizer que ingeriu a taça; naturalmente, ingeriu a bebida contida nela. O núcleo do objeto direto do verbo "tomar", entretanto, é a taça, não o vinho. Toma-se o continente (aquilo que contém algo) pelo conteúdo. Esse processo é bastante freqüente na linguagem do dia-a-dia. Ao abastecermos o carro com vinte litros de combustível, ao executarmos uma receita culinária que requer duas xícaras de farinha, ao comprarmos dez metros de tecido, ao sugerirmos que a criança não veja mais que duas horas de televisão por dia, ao relatarmos que o criminoso foi condenado a dezoito anos de prisão ou mesmo, no bar, ao pedirmos uma dose de uísque estamos fazendo uso da metonímia.

A medida --seja espacial (o continente), seja temporal-- substitui o termo, por assim dizer, exato ou próprio. Na verdade, nós abastecemos o carro com combustível, a receita culinária requer farinha, compramos tecido, a criança vê ou não televisão, o criminoso é condenado à prisão, o que pedimos no bar é uísque e assim por diante.

Hoje se tornou muito comum, sobretudo na linguagem da imprensa, medir distâncias pelo tempo de chegada por um ou outro meio de transporte. Numa frase como "Daqui até lá, são duas horas de viagem", também encontramos a metonímia. A medida temporal (duas horas) passa a ser o núcleo do sintagma.

Em linguagem referencial, diríamos que se trata de uma "viagem de duas horas de duração" ("viagem" é o núcleo); com a metonímia, dizemos que se trata de duas horas de viagem ("duas horas" é o núcleo).

São muitos os exemplos do cotidiano. Vale a pena observar a riqueza da linguagem de todos os dias, verdadeiro receptáculo da criatividade.

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